Olá, amigos, tudo bem?
É sempre uma grande satisfação estar aqui com vocês. No dia de hoje, trataremos de um assunto muito interessante e inovador na doutrina internacionalista brasileira: o controle de convencionalidade das leis.
No Brasil, esse tema foi trabalhado em caráter inédito na brilhante Tese de Doutorado do Prof. Valério de Oliveira Mazzuoli, defendida em 2008 e publicada em 2010 pela Ed. Saraiva com o título “Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno”. Por ser um assunto bastante atual, acredito que ele poderá ser objeto de cobrança nas próximas provas de Direito Internacional e até mesmo em provas de Direito Constitucional. Vamos lá!
A relação entre direito interno e direito internacional é objeto de grande controvérsia doutrinária, sendo que as duas principais correntes que tratam do tema são a dualista e a monista.
Segundo o dualismo, o direito internacional e o direito interno são dois ordenamentos jurídicos distintos e autônomos entre si, daí resultando que normas internas e normas internacionais não podem conflitar entre si. Nesse sentido, para os dualistas, ao assumir um compromisso internacional, um Estado está somente se vinculando no plano internacional, o que não traz qualquer repercussão no âmbito interno.
Segundo Paul Laband, criador da “teoria da incorporação”, para que um compromisso internacional seja aplicável no plano interno, é imprescindível sua internalização.
Os dualistas se dividem em radicais e moderados. O dualismo radical prega que a internalização dos tratados internacionais deve ocorrer por meio de lei; o dualismo moderado considera que a internalização de uma norma internacional pode ocorrer por meio de ato infralegal. De qualquer maneira, uma vez internalizado o tratado internacional, ele passará a ter eficácia também no plano interno e, na hipótese de conflito de normas, já não mais irá se tratar de antinomia entre norma internacional e norma interna, mas sim entre duas normas nacionais.
Por sua vez, o monismo considera que o direito internacional e o direito interno integram uma ordem jurídica única. Dessa forma, não haveria necessidade de internalização das normas internacionais ao ordenamento jurídico interno, pois estas já possuiriam eficácia automática no plano interno. Segundo Mazzuoli, o direito internacional e o direito interno formam um só universo jurídico, o qual rege as relações entre os Estados, as Organizações Internacionais e os indivíduos.
O monismo se desdobra em duas vertentes: o monismo internacionalista e o monismo nacionalista. O monismo internacionalista possui como maior representante Hans Kelsen, que considera que diante de um conflito aparente entre norma internacional e norma interna deverá prevalecer o diploma internacional. Já o monismo nacionalista, cujo maior expoente foi Hegel, considera que o conflito entre norma internacional e norma interna resolve-se em favor da norma nacional. A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados (CV/69) adota explicitamente a tese do monismo internacionalista, ao prever em seu art. 27 que “uma parte não pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”.
Analisando os pensamentos dualista e monista, chegamos à seguinte pergunta: qual é a posição adotada pelo Brasil?
Em primeiro lugar, cabe destacar que o texto da Constituição Federal de 1988 não estabelece com clareza qual a hierarquia entre tratados e normas internas. Coube, assim, à jurisprudência e à doutrina definir a hierarquia entre normas internas e internacionais no ordenamento jurídico brasileiro.
Até 1977, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerava que os tratados internacionais sempre prevaleciam sobre o direito interno. Entretanto, naquele ano, foi julgado o RE 80.004, que trouxe à baila novo entendimento jurisprudencial da Corte Constitucional. Passou a entender o STF que os tratados internacionais e as leis internas possuem paridade normativa e que o conflito entre eles deve ser resolvido pela aplicação dos critérios cronológico (lex posteriori derogat priori) e da especialidade (lex specialis derogat generali).
A partir desse entendimento do STF, é possível verificar que no Brasil a orientação jurisprudencial não é a de primazia absoluta do direito internacional sobre o direito interno, tampouco o contrário. Na verdade, o STF adotou uma variação mais branda do monismo internacionalista, a qual é denominada “monismo moderado”. Segundo o monismo moderado, inspirado no pensamento de Alfred von Verdross, o juiz deve aplicar tanto o direito internacional quanto o direito interno, determinando a primazia de um sobre o outro com base nos critérios cronológico e da especialidade.
Apesar do STF considerar que o Brasil adota a tese do “monismo moderado”, salta aos olhos o fato de que, em nosso país, os tratados internacionais somente possuem validade no plano interno após sua regular internalização. Não estaria então o Brasil adotando o dualismo?
Hildebrando Accioly é, dentre todos os autores que lemos, aquele que melhor explica a questão. Segundo o eminente jurista, “o monismo moderado, tal como se aplica no Brasil, representa o segundo momento do dualismo, quando a norma já incorporada poderá ou não colidir com a norma interna”. Para Accioly, há dois momentos distintos na discussão relativa à relação entre norma internacional e norma interna. O primeiro momento seria o relativo à incorporação das normas internacionais ao ordenamento jurídico interno; o segundo diria respeito à posição hierárquica no ordenamento jurídico. Dessa maneira, para Accioly, o Brasil adotaria “certa forma de dualismo, na modalidade moderada.”
A Constituição Federal de 1988 trouxe importante regra relativa aos tratados internacionais, a qual foi insculpida no art. 5º, § 2º. Segundo o referido dispositivo constitucional, “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
Segundo parte da doutrina internacionalista, representada por Mazzuoli e Flávia Piovesan, o referido dispositivo já era suficiente para permitir o ingresso dos tratados internacionais de direitos humanos no ordenamento jurídico com status de norma constitucional. Todavia, as manifestações doutrinárias não ecoaram no STF, que entendia que os tratados internacionais de direitos humanos guardavam paridade normativa com as leis ordinárias. Tal situação modificou-se com a edição da Emenda Constitucional nº 45/2004.
A EC nº 45/2004 introduziu ao texto da Carta Magna a regra do art. 5º, § 3º, que estabelece que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”.
Em 2008, no RE 466.343-1 / SP, o STF manifestou seu entendimento sobre o assunto, que representou uma enorme revolução na jurisprudência pátria acerca do direito internacional. Segundo a Corte Constitucional, os tratados internacionais de direitos humanos que não forem aprovados pelo procedimento próprio das emendas constitucionais (em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros) terão status supralegal. Em contrapartida, os tratados internacionais de direitos humanos que forem aprovados pelo rito próprio das emendas constitucionais terão equivalência de emenda constitucional. Percebe-se que, com seu novo entendimento, o STF inovou a pirâmide jurídica kelseniana, criando a possibilidade de que existam normas situadas em patamar acima das leis, mas abaixo da Constituição – normas com status supralegal.
Segundo Mazzuoli, o art. 5º, § 2º, da CF/88 já era suficiente para tornar os tratados internacionais de direitos humanos normas materialmente constitucionais. Todavia, os tratados internacionais de direitos humanos aprovados pelo rito próprio das emendas constitucionais seriam material e formalmente constitucionais. Dizer, portanto, que um tratado internacional possui equivalência de emenda constitucional significa reconhecer que ele se configura norma material e formalmente constitucional.
A EC nº 45/2004 trouxe ao Brasil, portanto, segundo o Prof. Valério Mazzuoli, um novo tipo de controle da produção normativa doméstica: o controle de convencionalidade das leis. Assim, as leis internas estariam sujeitas a um duplo processo de compatibilização vertical, devendo obedecer aos comandos previstos na Carta Constitucional e, ainda, aos previstos em tratados internacionais de direitos humanos regularmente incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro.
Para Mazzouli, “se a Constituição possibilita sejam os tratados de direitos humanos alçados ao patamar constitucional, com equivalência de emenda, por questão de lógica deve também garantir-lhes os meios que prevê a qualquer norma infraconstitucional ou emenda de se protegerem contra investidas não autorizadas do direito infraconstitucional.” Dessa forma, segundo a doutrina mais moderna, seria possível a utilização de ações típicas do controle concentrado de constitucionalidade (ADIn, ADECON e até mesmo ADPF), fundamentadas em tratados de direitos humanos. Com isso, seria possível a declaração de inconvencionalidade ou de convencionalidade de norma infraconstitucional face a um tratado internacional de direitos humanos incorporado ao ordenamento jurídico pelo rito próprio das emendas constitucionais.
Por fim, no que se refere aos tratados internacionais de direitos humanos não aprovados pelo rito próprio das emendas constitucionais, estes somente poderiam, segundo Mazzuoli, servir de paradigma para o controle difuso de convencionalidade. Isso porque tais tratados possuem status supralegal e caráter de normas apenas materialmente constitucionais.
Bem, pessoal, espero que tenham gostado dessa interessantíssima inovação doutrinária brasileira que, em breve, esperamos seja adotada pela jurisprudência pátria.
Um grande abraço a todos!
Ricardo Vale
“O segredo do sucesso é a constância no objetivo!”